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domingo, 13 de maio de 2012

ESCRITOS SOBRE O PROJETO "ABUTRES"

PROJETO “ABUTRES”

Um ato para o teatro de caixa

O tema “crueldade” surgia com muita frequência e insistência em meus pensamentos por um bom tempo. Depois de alguns “deixa pra lá” eu resolvi buscar na internet imagens sobre “crueldade humana” e entre muitas, a minha vista selecionou esta cena.


Quando vi pela primeira vez esta imagem me assustei com a alteração emocional que ela me causou. A crueldade desta cena tem uma dimensão assustadora. Provocou minha impunidade. Aniquilou meus medos e me jogou no abismo, destruindo minhas convicções. Um misto de repudia e adimiração. Não foi pelo ato e muito menos pelo fato dessa situação, a mim já recorrente, e sim pelo corpo imposto desta criança; encolhida, quase na posição fetal, alimentando-se aos poucos na medida de seu estomago comprimido. Esta criança, neste estado permanente, não consegue mostrar seu peito ao sol. Não ergue, não levanta, não se abre para o mundo. Tomei essa imagem da net, que tão pouco sei de quem é, e fui à busca de ajuda para falar sobre ela ou com ela. Professor e mestre Edson Fernando, co-artista em meus trabalhos, me indicou o filósofo e antropólogo francês René Girard como possibilidade para o entendimento do ato registrado nesta imagem.

Segundo Girard o desejo mimético é constitutivo da natureza humana. Invejamos ou admiramos modelos para nos guiar na vida, contudo quando invejamos um objeto, pessoa ou idéia que outro detêm, engendramos conflitos que podem irromper num sacrifício, seja ele com a eliminação física, por meio de um sacrifício simbólico ou por meio de assédio moral e psicológico.

Assim, todos os sistemas políticos, culturais e econômicos estariam permeados por um sagrado potencialmente violento em que a violência seria um componente natural das sociedades, necessitando ser ininterruptamente exorcizada pelo sacrifício de vitimas expiatórias.

A função do sacrifício é, portanto, apaziguar a violência e impedir a exploração de conflitos decorrentes de rivalidades cada vez mais crescentes que paradoxalmente focalizam uma vítima arbitrária cuja eliminação reconcilia o grupo e alcança o estatuto do sagrado. Essa vítima é chamada por Girard de “bode expiatório”, um inocente que polariza para si o ódio universal.

Utilizar a tese de René Girard para trabalhar o contexto que essa imagem apresenta, em um primeiro momento, me pareceu imprópria. Sai em busca de ampliar esta cena e localizar quem ou o que poderia se “alimentar” desta situação; buscar o outro para provocar um conflito que pudesse justificar a minha apropriação no trabalho que queria desenvolver. Imediatamente surgiu à figura do abutre com todo seu referencial simbólico amalgamado pela literatura, pelo cinema, revistas em quadrinhos, lendas, mitos e crendices populares. Tenho, então, dois personagens no contexto da fome onde eu poderia estabelecer o conflito ao qual Girard se refere. A possibilidade de transformação da criança, a partir da fome, provocaria no abutre o desejo mimético da inveja. O desdobramento deste ato seria a eliminação física, resultado desta transformação. A violência neste caso foi tratada como um elemento natural imposto pela condição do abutre, permeado pelo sagrado, imposto pela sua postura como guardião desta natureza humana. Tinha então os elementos para construir a minha cena. Próximo passo seria criar o ambiente em que essa cena acontecesse. Um ambiente árido, seco como as próprias personagens, seria o espaço infértil que eu procurava. Reproduzi um chão seco, rachado sem possibilidade de fertilização. É neste chão que vai brotar o elemento da transformação da criança, objeto da inveja do abutre. Uma rosa, feita de arame vermelho, foi a tradução formal deste objeto. O material deste objeto rosa provocou a construção dos bonecos, a criança e o abutre, como carcaças e sobre o arame foi aplicado látex, parecendo pele em decomposição. Neste sentido eu poderia igualar a essência simbólica dos elementos desta cena.


A próxima questão seria onde essa cena estará contida. A certeza de trabalhar com o suporte fechado ainda foi o meu foco. Busquei uma caixa com forma e tamanho que pudesse em um primeiro olhar, abrigar a minha cena. Decidir a posição que essa caixa estabelecerá entre o publico e o ator-animador foi importante nesse momento. O exercício foi pegar a caixa, colocar na minha frente, estabelecer a altura em relação ao meu corpo e imediatamente verificar a condição corporal de quem vai assistir. Defini que a minha caixa estaria fixada num suporte de chão, na altura de meu peito para eu poder observar, por uma fenda aberta na parte superior, o trabalho dentro da caixa. O suporte foi construído com varas de miriti para garantir a leveza, papietado com papel kraft e goma de tapioca, posteriormente envelhecido com betume. Uma fenda retangular foi aberta na frente da caixa para o olhar do publico numa relação frontal com o objeto.
Próximo passo foi simular a manipulação dos bonecos para definir as aberturas que permitirão a entrada das minhas mãos na execução a cena. Duas aberturas, em circulo, foram abertas na lateral da caixa para esse fim. Na parte posterior da caixa foi criada uma abertura para a manutenção interna do trabalho. Um chão falso na parte inferior da caixa, como uma espécie de alçapão, foi feito para facilitar a condução da cena do nascimento da rosa de arame vermelha. Duas pequenas aberturas circulares foram feitas na parte superior da caixa para a localização da iluminação, feita por duas lanternas de leds.

Definidas as questões funcionais parti para a definição da visualidade externa da caixa e a personagem que estaria conduzindo esse objeto e projonto o jogo com o publico. Esses dois elementos foram pensados juntos na medida em que eles definem a abordagem - primeiro momento estabelecido com o publico.

A imagem da caixa foi formatada reproduzindo uma plantação de rosas secas em um terreno seco, num estado de abandono. O resultado plástico foi obtido com papietagem e aplicação de rosas em papel kraft com envelhecimento de betume.



A ideia de um jardineiro despejando, de seu regador, um liquido vermelho próximo aos pés de quem assiste, seria o gesto do ator-animador para essa personagem. A presença desse jardineiro carregando essa caixa de flores em decomposição com esse gesto simbólico, em tese, reforçaria a impunidade da situação. Vou perceber isso melhor quando das apresentações.

Um blues completa a narrativa desse trabalho como o indutor sonoro da cena interna da caixa . Para isso foi utilizado um mp3 e fone de ouvido para reprodução.

Resta agora a estréia. Que assim seja.

Anibal Pacha

Um comentário:

  1. Trabalho muito bem apresentado. Agora é só colocar na rua e compartilhar a narrativa inquietante com o público.

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